O uso de animais no desenvolvimento de cosméticos e as alternativas
Autor(a): Octavio Augusto França Presgrave
Recentemente, o governo paulista sancionou a lei nº 777/2013, que passou a proibir, no Estado, o uso de animais no desenvolvimento de cosméticos, perfumes e produtos de higiene pessoal. O que isso pode significar? Qual o impacto desse ato? O que gerará essa proibição? Este artigo preocupa-se em comentar o assunto sob o ponto de vista científico.
O uso de animais remonta há muitos séculos, quando surgiram os estudos nas áreas de anatomia e fisiologia. A partir de 1760, com Ferguson, e ao longo do século XIX, com Marshall Hall e Jeremy Bentham, a ideia de substituir o uso de animais começou a ganhar espaço. Apesar de Russell e Burch terem lançado o conceito dos 3Rs (Replacement, Reduction and Refinement – Substituição, Redução e Refinamento) em 1959, até o final da década de 1970 poucos estudos foram desenvolvidos na busca de métodos alternativos de pesquisa e desenvolvimento de produtos. Esse cenário começou a mudar apenas em meados da década de 1970, com movimentos na Europa de ativistas contrários ao uso de animais pelas indústrias cosméticas.
Neste ponto começa a explicação do motivo pelo qual os cosméticos são os produtos mais visados no que tange o uso de animais. Pesa ainda o fato de as pessoas acharem que cosméticos são produtos supérfluos ou de ouvirem demasiadamente que cosméticos são produtos totalmente seguros. Se a Europa proibiu o uso de animais pela indústria cosmética, qual é o problema de fazermos o mesmo? Vamos aos pontos.
Como forma de acelerar o processo, a sétima emenda à Diretiva Europeia sobre Cosméticos traçou um cronograma para que os testes com animais fossem abandonados. Em 2004, em documento sobre o avanço dos estudos, a Comissão Europeia já afirmava que, antes do prazo limite (março de 2013), não haveria como fazer a substituição em áreas como estudos crônicos, sensibilização, teratogenicidade, toxicidade reprodutiva etc. Mesmo assim, muito mais como decisão política do que técnica, a União Europeia manteve sua posição e o uso de animais em qualquer fase do desenvolvimento e produção de cosméticos foi proibido.
Qual é o impacto dessa decisão? Ainda não se sabe. O que é possível dizer com certeza é que está havendo um impacto grande no desenvolvimento de novas matérias-primas. Se há etapas desse processo para as quais ainda não há alternativas ao uso de animais, como desenvolver novos produtos que atendam aos parâmetros de segurança exigidos?
Brasil - Em nosso País, “cosmético” é um termo que abrange basicamente quatro categorias de produtos: cosméticos (batom, sombra, blush etc.), produtos de higiene (sabonete, xampu, condicionador etc.), perfumes e produtos infantis (independente de quais sejam). Assim, sob a égide do termo “cosmético”, temos produtos que, fora do Brasil, são considerados medicamentos de venda livre ou que atendem a ambos (cosméticos e medicamentos), como é o caso de enxaguatórios bucais, dentifrícios, repelentes, filtros solares, xampus anticaspa etc. Considerando a natureza de alguns destes produtos, como faremos para avaliar suas condições de segurança se, como explicado, não há métodos alternativos para todos os ensaios que precisam ser feitos? Vamos deixar de usar animais para os cosméticos, na real concepção da palavra, ou para todos os produtos que, aqui no Brasil, são considerados cosméticos?
Outro ponto de suma importância: não devemos nos preocupar em banir o uso de animais para cosméticos, ou saneantes, ou medicamentos. Devemos nos preocupar com os desfechos, ou seja, vamos deixar de usar animais para os testes de irritação cutânea; vamos deixar de usar animais para os testes de fototoxicidade; vamos buscar alternativas para deixarmos de usar animais nos testes de sensibilização. Esse é o ponto: a partir do momento em que deixamos de usar animais para verificar o potencial de irritação cutânea, deixamos de usar animais em cosméticos (cremes, sombras, filtros solares etc.), medicamentos (pomadas de uso tópico etc.). A questão não é deixar de usar animais para um produto, mas, sim, deixar de usar animais para uma finalidade, para um ensaio, para um desfecho!
Durante muito tempo, o Brasil não teve uma legislação específica sobre uso de animais. Os cuidados ficavam dispersos em diversos diplomas legais, até que, em 2008, foi publicada a Lei 11.794, que regulamenta o uso de animais na experimentação e na educação. Com ela foi criado o Conselho para o Controle da Experimentação Animal, que possui, entre outras, a competência de introduzir os métodos alternativos no Brasil. Em 2012, foram criados o Centro Brasileiro para Validação de Métodos Alternativos e a Rede Nacional de Métodos Alternativos. Essa tríade tem a responsabilidade de estudar, desenvolver e validar métodos no Brasil em consonância com o conceito dos 3Rs, além de manter intercâmbio com instituições congêneres internacionais.
Dissemos anteriormente que não temos substituição em todas as áreas. E isso nos apresenta outro problema: e quando existe e não temos acesso? É o caso do modelo de pele humana reconstituída, um método já validado internacionalmente e que substitui o uso de coelhos no teste de irritação de pele. Trata-se de um kit contendo pele humana em cultura e que tem validade de apenas sete dias. Para termos acesso precisamos reduzir a burocracia que envolve o recebimento deste produto, melhorando o fluxo pela alfândega.
Hoje em dia temos métodos alternativos de substituição para testes de permeação cutânea, corrosividade cutânea, fototoxicidade e irritação da pele, por exemplo. Outras áreas, como irritação ocular, possuem testes que, se não substituem por completo, usam métodos in vitro para assegurar que a toxicidade não é extrema, sugerindo o uso de animais em etapas posteriores onde o risco é menor. Estudos de toxicidade aguda e sensibilização apresentam, hoje em dia, alternativas de redução, onde se pode obter o mesmo resultado com um número menor de animais.
Esse assunto é vasto, polêmico e não se esgota simplesmente. O importante é termos em mente que não existem alternativas para todas as áreas. Onde existem alternativas válidas, elas têm que ser empregadas. Onde ainda existe a necessidade de uso de animais, que estes sejam utilizados em número reduzido, com respeito e dentro dos preceitos éticos, mas em condições de garantir resultados confiáveis.
As pesquisas em métodos alternativos necessitam de investimentos por parte dos órgãos de fomento, dos setores produtivos e, também, vindos dos segmentos contrários ao uso de animais, pois esta é uma oportunidade de contribuírem de forma mais efetiva. O desenvolvimento de alternativas pode significar, além das questões éticas, um aumento na segurança do ensaio e um avanço tecnológico.
O autor é Mestre em Ciências (Biologia Celular e Molecular) e defendeu seu Doutorado em 2012, sobre a criação e estruturação do Centro Brasileiro para Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM). Trabalha com experimentação animal, desde 1982, e métodos alternativos, desde 1986, no Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), da FIOCRUZ/RJ. Produziu diversos trabalhos sobre métodos alternativos, controle da qualidade toxicológico de cosméticos, saneantes e medicamentos injetáveis. É membro da Câmara Técnica de Cosméticos da Anvisa, coordenador da Comissão de Ética no Uso de Animais da FIOCRUZ e Coordenador do BraCVAM. Contatos podem ser feitos pelo e-mail: octavio.presgrave@gmail.com.