A Espectroscopia Raman revelando a química das obras de arte
Quando o assunto é arte, dificilmente se pensa em química. Aparentemente são atividades tão distintas que até estão associadas a lados diferentes do cérebro. A realidade, entretanto, vem se mostrando bem diferente: desde a escolha dos materiais a serem empregados até as metodologias usadas na restauração de uma obra ou a definição de estratégias para prevenir sua degradação passam, em maior ou menor grau, pela química. Além disso, ainda tem “a mãozinha” que essa ciência dá na hora de determinar se uma obra de arte é autêntica ou uma falsificação.
Pode-se dizer que mesmo para a comunidade artística, a química não é mais a ciência das substâncias mal cheirosas e explosivas. Ao contrário, novas ferramentas de análise foram desenvolvidas ao longo das últimas décadas, as quais sequer necessitam que sejam retiradas amostras da obra para se obter a informação desejada. Uma dessas ferramentas é a Espectroscopia Raman.
Quais os materiais empregados? Qual a técnica utilizada? No caso de uma pintura, quais os pigmentos utilizados? O que causa esse ou aquele tipo de degradação? Como evitar que a obra se degrade? É possível determinar se a obra é verdadeira? Essas são as questões mais frequentes quando a análise química se faz necessária. Não há dúvida de que vários métodos analíticos podem ser utilizados, mas a grande maioria deles demanda que um fragmento da obra seja removido, o que nem sempre é possível. A Espectroscopia Raman é uma ferramenta de análise através da qual é possível atender todas estas questões, sem que seja necessário coletar amostras do objeto, seja cortando-o, raspando-o, perfurando-o, vaporizando-o ou solubilizando-o.
O número de exemplos que podem ser encontrados na literatura acerca de aplicações da Espectroscopia Raman em temas relacionados à arte é muito grande e vem crescendo rapidamente. Por esse motivo, apenas alguns exemplos ilustrativos foram selecionados para este texto. No caso da caracterização de materiais há várias abordagens possíveis, mas certamente aquelas relacionadas à restauração de bens, à história da arte e à possibilidade de falsificações certamente se destacam.
No primeiro caso, um dos critérios a ser estritamente seguido na escolha dos materiais a serem empregados é o da compatibilidade química, sem o que pode haver comprometimento da obra (seja no aspecto estético, seja no aspecto mecânico ou mesmo da própria restauração). Um excelente exemplo é a identificação de pigmentos empregados na produção de uma pintura em tela: a Figura 1A mostra espectros do azul da Prússia, hexacianoferrato de ferro de fórmula Fe4[Fe(CN)6]3?14-16H2O e do azul de ftalocianina (ftalocianina de cobre), ambos pigmentos azuis. A figura 1B mostra que a coloração verde empregada em lápis de cor pode tanto decorrer de misturas de azul da Prússia e amarelo de cromio (cromato de chumbo, PbCrO4) quanto de azul de ftalocianina e um corante orgânico sintético, da classe das diarilidas (especificamente, diarilida 14). A identificação de pigmentos e corantes é um ponto muito importante na autenticação de obras de arte e tem, portanto, um papel fundamental na detecção de falsificações.
Figura 1- Identificação de pigmentos: (A) Espectros Raman de pigmentos azuis;
(B) Espectros Raman de pigmento verde (a), constituído por uma mistura de azul:
ftalocianina de cobre, espectro (b), e amarelo, diarilida 14, espectro (c)
As questões referentes à história da arte têm desdobramentos variados, como em antropologia e economia, uma vez que a produção cultural reflete os valores de uma sociedade em certo período da história. Quando se descobriu a similaridade na composição química de um pigmento sintético produzido pelos egípcios há cerca de 3000 anos (azul do Egito, CaCuSi2O6) com o pigmento conhecido como azul de Han (BaCuSi2O6, também conhecido como azul da China), empregado pelos chineses aproximadamente na mesma época, aventou-se a possibilidade de ter havido uma rota de comércio entre essas duas civilizações, o que foi descartado posteriormente. Esse fato exemplifica, entretanto, quanto é importante a obtenção de informações referentes à composição química de materiais empregados na produção de bens culturais.
Será que os egípcios têm algo mais a nos revelar em termos de pigmentos? Quais teriam sido os materiais empregados por eles na decoração de um sarcófago encontrado em um sepultamento do período greco-romano de cerca de 2000 anos de idade? Fragmentos de artefatos relacionados a práticas funerárias do Egito antigo (Figura 2) pertencentes ao Museu de Manchester (Reino Unido) foram analisados por Microscopia Raman permitindo a identificação dos pigmentos usados: hematita (-Fe2O3) para o vermelho, mistura de hematita e calcita (CaCO3) para a cor rosa, ouropigmento (AS2S3) no caso do amarelo e carvão como pigmento preto. A cor laranja foi preparada misturando-se hematita com ouropigmento ou então usando massicote e litargírio (PbO ortorrômbico e tetragonal, respectivamente) e a cor azul foi identificada com sendo produzida por lazurita (um aluminosilicato de composição Na3CaAl3Si3O12S). O substrato para esses desenhos foi uma mistura de calcita, cal e gesso e a decoração foi coberta por uma resina, cuja origem não pôde ser determinada com precisão.
Figura 2 - Foto de fragmento de sarcófago egípcio analisado por Microscopia Raman
Esse exemplo, apesar de não implicar em grandes revelações históricas ou econômicas, ilustra a eficiência da Microscopia Raman na identificação não destrutiva da composição química de um objeto. Por outro lado, essas informações, auxiliam na compreensão do contexto histórico-cultural de uma sociedade e, por vezes, também no esclarecimento da técnica empregada na fabricação do objeto. Esse fato pode ser exemplificado através da arte indígena: a decoração de potes cerâmicos é uma das características marcantes dessa arte e, certamente, saber como essa decoração foi aplicada pode revelar aspectos do conhecimento técnico de determinados grupos nativos. Geralmente as cores usadas são provenientes de minerais e espécies químicas sensíveis ao calor e podem servir como indicadores para se saber se a peça foi decorada antes ou após ter sido queimada. Um bom exemplo disso são os óxidos de ferro já que, sob aquecimento, goetita [oxi-hidróxido de ferro de fórmula -FeO(OH)] e magnetita (Fe3O4) podem ser convertidos a hematita em temperaturas compatíveis com as produzidas por fogueiras (tipicamente entre 500 e 700 °C), e a detecção desses minerais em objetos cerâmicos decorados pode indicar que a decoração foi feita posteriormente à queima da argila.
A identificação de pigmentos empregados em bens culturais dos mais variados tipos com certeza é um dos tópicos mais explorados em termos de aplicação de Microscopia Raman. É possível fazer a identificação inequívoca de pigmentos usados em inúmeros contextos, dentre os quais se destacam pinturas rupestres, arte pré-colombiana, arte indígena brasileira, selos, esculturas, tecidos, murais e pinturas. A utilização de um microscópio permite analisar misturas de pigmentos e discriminar partículas que tenham dimensões de poucos micrômetros. Uma ótima ilustração acerca da potencialidade da técnica nessa área é um estudo de iluminuras presentes em um livro religioso bizantino do século 13, pertencente à Biblioteca Britânica. Iluminuras são pinturas coloridas usadas para decorar o início de capítulos em textos religiosos e, neste caso, continham anjos negros, o que tornava a obra particularmente valiosa por sua raridade, mas a análise por Microscopia Raman revelou que a cor negra era decorrente de reação posterior sofrida pelo pigmento branco, carbonato básico de chumbo, Pb3(CO3)2(OH)2, com H2S presente no ambiente, resultando em sulfeto de chumbo PbS, pigmento preto.
A aplicabilidade da técnica não é restrita a compostos inorgânicos, como os exemplos dados podem sugerir, estendendo-se igualmente a substâncias orgânicas naturais ou sintéticas, como demonstrado em um estudo sobre um tembetá de resina pertencente ao Museu de Arte e Etnologia da USP. Tembetás são adornos labiais usados por grupos indígenas e podem ser de madeira, pedra ou ainda, mais raramente, de resina vegetal. O tembetá estudado foi encontrado em pedaços em um sítio arqueológico no interior de São Paulo, sendo que a parte interna dos fragmentos apresentava um brilho vítreo enquanto a parte externa tinha um aspecto ferruginoso, o que poderia indicar tratamento ou acabamento da peça com óxidos de ferro. A análise por Microscopia Raman revelou que o tembetá era constituído de uma resina triterpênica e que o aspecto terroso era devido à resina degradada por efeito de intempéries.
Órgão datado de 1625 em igreja da França: tubos de chumbo sujeitos a corrosão
A própria questão da investigação da degradação de bens culturais, incluindo obras de arte, também tem na Espectroscopia Raman uma poderosa aliada. Os processos de decaimento podem ter incontáveis causas, mas o diagnóstico certamente passa pela identificação de produtos de degradação, como pode ser exemplificado no estudo de corrosão de metais. Apesar da Espectroscopia Raman não permitir a análise elementar, o que a torna ineficaz no estudo de metais e suas ligas, a caracterização de produtos de corrosão pode trazer informações muito importantes sobre os agentes agressores, levando à adoção de estratégias preventivas. Um excelente exemplo é o da corrosão de chumbo que afeta tubos metálicos de órgãos históricos (séc. XVI e XVII) na Europa: a corrosão é causada pelos ácidos orgânicos (principalmente fórmico e acético) que são produzidos pela madeira que constitui a estrutura e caixa de ar dos instrumentos, a qual, ao sofrer hidrólise no processo natural de envelhecimento, libera além desses, outros produtos orgânicos voláteis. Esculturas de chumbo em contato com madeira, com tintas ou outras substâncias que produzem formaldeído também tem seu processo de corrosão acelerado grandemente.
A identificação da composição química de objetos também é incontestavelmente relevante do ponto de vista forense, no que diz respeito às falsificações. Objetos de marfim, como pequenas esculturas, por exemplo, são alvos insistentes de falsificadores, devido ao valor desse material, à relativa facilidade em imitá-lo e à grande procura que desperta. Uma das formas de avaliar a autenticidade da peça é através de suas propriedades, como a densidade, mas falsificadores hábeis podem mimetizar a densidade do marfim através da mistura de diferentes substâncias. A Espectroscopia Raman permite a identificação imediata de imitações. Na análise de vários pequenos objetos entalhados, supostamente de marfim, verificou-se que em vários casos tratava-se de uma mistura de polímeros sintéticos (poliestireno e polimetilmetacrilato) à qual havia sido adicionado carbonato de cálcio, provavelmente para simular as características físicas do marfim.
Pigmentos e corantes também são extremamente úteis quando a questão da autenticidade de uma obra de arte é considerada. No século XX ocorreu grande expansão da indústria química de corantes e pigmentos; a identificação de colorantes modernos em obras antigas facilita a detecção de fraudes. Assim, é possível associar, de forma inequívoca, na maioria dos casos, a presença de determinadas substâncias colorantes com datas específicas. Talvez o melhor exemplo seja o das ftalocianinas. Por serem substâncias sintéticas, sua comercialização iniciou-se na década de 1930 e sua detecção em obras de arte datadas de períodos anteriores sugere que sua autenticidade pode ser questionada.
Como comentário final, cabe concluir que este texto pretendeu mostrar através de alguns exemplos que a química está presente na intimidade da arte e é a guardiã de segredos valiosos, os quais a Espectroscopia Raman vem ajudando a desvendar.
Díptico de marfim com cena da paixão de Cristo. França, cerca de 1250