Muito mais que falta de saídas de emergência
Autor(a): Miguel J. Dabdoub
As informações sobre as causas e mecanismos das mortes durante o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), devem ser complementadas corretamente e com o máximo de detalhes, o que ajudará a evitar problemas semelhantes no futuro.
Com certeza, a maioria das mortes ocorreu por envenenamento químico devido à ação de várias substâncias tóxicas formadas em decorrência da degradação térmica do poliuretano PU (espuma utilizada no isolamento acústico) e que são muito mais letais que o próprio monóxido de carbono (CO), também formado nesse processo.
Entre as substâncias geradas pela queima direta ou pelo aquecimento intenso dos poliuretanos (espumas) estão os isocianatos, as aminas, o cianeto de hidrogênio (ácido cianídrico), óxidos de nitrogênio (como o óxido nítrico, NO) e o dióxido de nitrogênio (NO2). Este último é associado a incêndios; mas, no caso da decomposição do poliuretano, sua concentração é muito mais alta. Esses gases resultam na formação de uma fumaça mortal, que é mais densa do que o ar. Além deles, formam-se ainda o monóxido de carbono e o dióxido de carbono, que resultam da queima de qualquer outro material orgânico. Assim, as proporções e a composição exata desses gases dependem do tipo de poliuretano queimado, que compreende ampla variedade.
Uma dessas substâncias isoladamente, o isocianato de metila, matou mais de oito mil pessoas em Bhopal, na Índia, em 1984, no pior desastre químico da história da humanidade. Foi causado pela empresa Union Carbide e ainda tem consequências sobre os sobreviventes dessa tragédia. Esse tipo de substância e outras geradas pela queima da espuma do isolante acústico mataram pessoas na boate em Santa Maria e em outra boate no Estado norte-americano de Rhode Island, em 2003. Vídeos de acesso público na internet mostram que muitas das vítimas do caso norte-americano foram queimadas pelo fogo após o envenenamento, enquanto a maioria das vítimas fatais em Santa Maria permaneceu intocada pelo fogo. Tudo isso mostra que os gases tóxicos liberados foram mais letais do que o fogo, pois em determinadas concentrações podem matar em tempos que não superam um a dois minutos.
Mesmo se tivessem aumentado o número de saídas de emergência ou deixado livres as saídas na boate Kiss, muitas mortes ainda teriam acontecido. Na boate The Station, em Rhode Island, existiam quatro saídas de emergência, além da porta de entrada, e nenhum segurança, supostamente, impediu alguém de sair. Mesmo assim, 96 pessoas perderam a vida por causa dos gases tóxicos. Essa é a realidade.
As consequências dos gases gerados no incêndio na boate Kiss foram letais para quem os respirou acima do Valor Limite de Tolerância (VLT) de 20 ppb (partes por bilhão) para exposição aos isocianatos em períodos muito curtos. O olfato humano só consegue perceber sua presença entre 200 e 500 ppb, enquanto para o monóxido de carbono o VLT é de 39 ppm (partes por milhão).
O pior é que a tragédia se repete. Até quando as empresas que fabricam esse material continuarão vendendo produtos inadequados para determinadas utilizações? Até quando a legislação vai deixar de exigir a utilização de isolantes acústicos à prova de fogo e revestidos com retardadores de chama? Em muitos lugares, inclusive em Santa Maria, a legislação faz essas exigências, mas a fiscalização não cumpre seu papel.
Retardadores - Os retardadores de chama mais importantes são substâncias à base de compostos de fósforo ou o hidróxido de alumínio. Por diversos mecanismos, eles formam uma superfície carbonizada, no caso do fósforo, ou uma camada protetora de óxido de alumínio, no segundo. Esses mecanismos impedem a queima e as reações de degradação do poliuretano.
Mas parece que ninguém entendeu a relação causa-consequência. Tanto na tragédia dos Estados Unidos, cujas mortes tiveram exatamente as mesmas características, quanto na de Santa Maria, as informações chegaram incompletas. Nem o jornalismo sério, nem as autoridades ou a população perceberam a extensão do problema.
Algo tem que ser feito e com fundamentação técnica e científica. Não só nas investigações da tragédia de Santa Maria, mas também e, principalmente, no controle que os órgãos públicos devem exercer sobre as condições de segurança e das características de materiais construtivos, antes de emitir qualquer alvará. Se um local possui alvará de bombeiros e de funcionamento, entende-se que a legislação vigente é obedecida e cumprida, existindo as saídas de emergência, os sistemas contra incêndios e as sinalizações de emergência requeridas por lei, além das características adequadas dos materiais construtivos. Portanto, a responsabilidade passa a ser de quem autoriza. E é assim que a Constituição Federal delega aos municípios o poder de licenciamento, aprovação, embargo e fiscalização, enquanto os Legislativos são instituídos de poder para criar leis que obriguem à inspeção e manutenção dos estabelecimentos.
Mas o que os órgãos fiscalizadores ou os proprietários entendem de materiais construtivos como espumas de isolamento acústico? E, ainda mais, das suas características em condições adversas, como a ação do fogo ou do calor sobre esses materiais? Parece que não entendem o suficiente, para não dizer que não entendem nada. É preciso maior capacitação e informação, principalmente dos órgãos públicos e fiscalizadores.
A realidade mostra que, na boate Kiss, com ou sem alvará, a tragédia iria ocorrer, pois o show pirotécnico aconteceu e o revestimento acústico inadequado estava lá e geraria o ácido cianídrico – o gás empregado em câmaras de gás, na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, e também em execuções judiciais em alguns Estados americanos, por ser altamente letal – e os óxidos de nitrogênio, também usados nas câmaras de gás na Segunda Guerra Mundial. Sem contar o isocianato, cuja mortalidade foi conhecida em Bhopal, e o monóxido de carbono, único gás que, de forma simplista, vem sendo mencionado nas notícias sobre o incêndio na boate Kiss.
Com certeza, a população do nosso país não esperava uma tragédia que nos causasse tamanha consternação. Somos cidadãos solidários e sofremos juntos, mas temos a obrigação de buscar a total melhoria nos processos de prevenção, prestando mais atenção e cobrando dos legisladores e do poder público, como um todo, ações mais adequadas e honestas, com bases técnicas e científicas, que garantam eliminar qualquer possibilidade de novas tragédias, baseados no tripé legislação, fiscalização, punição.
Graduado em Química Industrial pela Universidade Federal de Santa Maria, Miguel J. Dabdoub é professor do Depto. de Química da USP de Ribeirão Preto. Contatos podem ser feitos pelo e-mail migjodab@usp.br.
Nota: este artigo foi originalmente publicado na edição de março do Jornal da USP online. Pela relevância e alerta que lança
para a discussão, o Informativo CRQ-IV obteve autorização do autor para republicá-lo.