Um experimento que começou a ser realizado este ano na Estação Espacial Internacional ganhou destaque em sites, blogs e agência de notícias especializados em ciência e tecnologia. Trata-se da aplicação da chamada água supercrítica, que tem entre as suas propriedades a capacidade de manter uma combustão, o que é possível por conta de um fenômeno conhecido como “chama de difusão”. Ou seja, em vez de apagar um incêndio, esse tipo de água pode não só sustentá-lo como também é capaz de atacar os materiais que estejam ao seu redor. A Agência Espacial Americana (Nasa), inclusive, produziu o vídeo abaixo sobre o assunto.
CRQ-IV
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Substâncias são estudadas no âmbito
da Química Verde, explica Bazito |
Conforme definição do Grupo de Pesquisa em Química Verde e Ambiental (GPQVA), da Universidade de São Paulo (USP), “fluido supercrítico é qualquer substância que foi pressurizada e aquecida acima de sua pressão e temperatura críticas (ponto crítico), passando a ter propriedades intermediárias entre um gás e um líquido. Eles difundem como gases e dissolvem outros materiais”.
Mas por que produziríamos uma água que pode manter uma chama acesa? E para que servem os fluidos supercríticos? Conforme explica Reinaldo Camino Bazito, professor do Instituto de Química da USP e integrante do GPQVA, essas substâncias são estudadas no campo da Química Verde para funcionarem como solventes alternativos, voltados a reduzir o impacto ambiental de vários processos produtivos. Acetona, etanol e metano também podem ser usados para essa finalidade, mas o fluído supercrítico mais utilizado atualmente é dióxido de carbono (CO2-sc) que, segundo Bazito, “já é aplicado na produção do café descafeinado e na extração do lúpulo para fabricação de cerveja”.
Outras potenciais aplicações para o CO2-sc são a lavagem de roupas a seco (substituindo o poluente percloroetileno) e o encapsulamento de fármacos, que também está sendo testado pelo grupo coordenado por Bazito. Nesta linha de pesquisa, ainda em andamento, são realizadas a síntese e o estudo de propriedades de tensoativos e polímeros anfifílicos para uso no dióxido de carbono supercrítico, visando utilizá-lo na encapsulação de medicamentos.
O professor da USP explica que o CO2-sc pode ser produzido mais facilmente do que a água supercrítica, pois os índices de temperatura e pressão para obtê-lo são consideravelmente menores, o que reduz os custos. Para efeito de comparação, enquanto o dióxido de carbono supercrítico surge a aproximadamente 32 °C e 73 bar de pressão em um reator, a água atinge essa condição somente com 373 °C e pressão de 217 bar. No vídeo abaixo, Bazito detalha as etapas do processo de produção de CO2-sc dentro de um reator.
Nessas condições, a água supercrítica apresenta um comportamento inverso ao da água líquida em temperaturas e pressões mais baixas. Ela é capaz, por exemplo, de dissolver compostos orgânicos que são insolúveis em água comum. Sais, por outro lado, passam a ser insolúveis nesse meio. Como essas condições são muito drásticas, as moléculas orgânicas dissolvidas podem se degradar, o que limita consideravelmente a aplicação da água supercrítica como solvente. São essas propriedades que permitem a principal aplicação dessa substância, em um processo denominado “Oxidação por Água Supercrítica” (Supercritical Water Oxidation – SCWO na sigla em inglês), utilizado para a destruição de substâncias orgânicas de difícil remoção.
Persistentes - Ao divulgar as pesquisas que estão sendo feitas com água supercrítica na Estação Espacial Internacional, a Nasa sugeriu que uma de suas aplicações poderia ser a incineração de resíduos orgânicos gerados principalmente por grandes cidades e instalações industriais. “Quando a água supercrítica é misturada a matérias orgânicas, ocorre uma reação química, a oxidação, que é uma maneira de queimar sem chamas”, disse Mike Hicks, do Glenn Research Center, de Ohio (EUA), ao site da Nasa. Trata-se de uma alternativa relativamente limpa de combustão, “que tem como produto água e dióxido de carbono e sem nenhum dos produtos tóxicos da incineração tradicional”, completou.
Reinaldo Bazito observa, entretanto, que a água no estado supercrítico é capaz de causar danos por corrosão, depois de algum tempo, até mesmo a reatores de titânio, que são extremamente caros. Por isso, sua produção em larga escala se justificaria somente em casos especiais, como a destruição de poluentes orgânicos persistentes.
Com base nesse contexto, o professor da USP acredita que os testes divulgados pela Nasa estejam sendo feitos apenas para que seja avaliado o uso da água supercrítica sem a presença de gravidade. Sem levar em conta os elevados custos para sua produção, “a água supercrítica pode ser muito perigosa pelo alto poder de corrosão, além das altas temperaturas e pressões envolvidas”.
Bazito informa que o Brasil possui vários grupos que se dedicam a desenvolver solventes baseados em fluídos supercríticos, mas a sua adoção pelo setor produtivo ainda é pontual.
Ciência busca reduzir uso de produtos nocivos
A Química Verde é definida pela International Union of Pure and Applied Chemistry (Iupac) como “a invenção, desenvolvimento e aplicação de produtos e processos químicos para reduzir ou eliminar o uso e a geração de substâncias perigosas”, nocivas de algum modo à saúde humana ou ao meio ambiente.
Com foco nesses objetivos, o Grupo de Pesquisa em Química Verde e Ambiental (GPQVA) do IQ-USP foi criado em 2003 pelos professores Renato Sanches Freire (orientador do trabalho que venceu a edição 2011 do Prêmio CRQ-IV na modalidade “Química de Nível Superior”) e Paola Cório. O professor Reinaldo Camino Bazito ingressou em 2006, enquanto o docente Cassius Vinicius Stevani completou a composição atual dois anos depois.
Os objetivos do grupo são desenvolver pesquisa científica e tecnológica na área, ministrar disciplinas de graduação e pós-graduação e oferecer cursos de capacitação e extensão à comunidade em geral. Cada docente tem áreas predominantes de interesse, desde os fluidos supercríticos pesquisados por Bazito, passando por métodos limpos de degradação de poluentes, bioensaios ecotoxicológicos e desenvolvimento de novos materiais e catalisadores. Os integrantes do grupo procuram atuar de forma integrada, empregando suas diferentes formações para o estudo e resolução de questões ligadas ao meio ambiente.
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