Quality by Design (QbD): ciência aplicada na manufatura e desenvolvimento de Produtos Químicos
Autor(a): José C. Menezes, Anderson Flôres e Francisca F. Gouveia
Ilustração fornecida pelos autores
Introdução - O Quality by Design (QbD) é uma ferramenta de desenvolvimento de produtos e processos na área química, farmoquímica e farmacêutica. O objetivo de seu uso é a consistência da aplicação de Engenharia de Processo alinhada à Análise Estatística Multivariada.
A eficácia do QbD já foi constatada pelas principais agências regulamentadoras do mundo, que entendem que essa ferramenta é capaz, quando bem aplicada, de minimizar e prever desvios de produto e processo, permitindo ações que antecipem os problemas. Um exemplo claro desse direcionamento é a ICH1 (International Conference Harmonization) Q11, de maio de 2012, lançada pela Food and Drugs Administration (FDA), a agência regulamentadora de medicamentos e alimentos dos EUA, que indicou que o QbD deve ser usado no desenvolvimento e fabricação de produtos farmacêuticos contendo princípios ativos de origem química ou biológica.
Outra atividade importante que pode ser desenvolvida com o QbD é a otimização de processos e produtos existentes e em produção e até mesmo na solução definitiva de problemas operacionais de difícil caracterização, permitindo assim a implementação de ações corretivas e preventivas definitivas.]
Antecedentes históricos - O conceito de QbD tem mais de 25 anos e está relativamente bem estabelecido em indústrias cujos produtos têm obrigatoriamente de obedecer a requisitos de qualidade, segurança e desempenho ou eficácia (QSE). A noção de Quality as Manufacturing-Science nasceu com os trabalhos de Juran e Deming nos anos 80 e 90 do século passado2,3 e tem relação com os processos produtivos criados por duas grandes companhias globais: o Six Sigma, da Motorola, e o Lean Manufacturing (produção enxuta), da Toyota.
Para a indústria farmacêutica (primária ou secundária), o momento atual assinala a primeira década da introdução dos conceitos que apoiam o novo paradigma.Noções de QbD apareceram pela primeira vez em documentos da FDA sobre Boas Práticas de Produção para o século 214, de 2001, na diretiva marco sobre PAT (Tecnologia de Análise de Processo), de 20045.A ICH Q8, de 2005, e a sua versão de 20096 definem o QbD de maneira objetiva e detalhada e fornecem exemplos de implementação simples. A ICH Q11 é o documento síntese mais recente e completo, contendo já os conceitos da validação e verificação continuadas ao longo do ciclo de vida, proposto pela FDA em 2011, por oposição a uma validação pontual com três lotes no início do ciclo de vida do processo 1,7.
Os Elementos do QbD - A concepção ou projeto de um processo capaz de produzir de forma robusta e confiável lotes conformes, sem qualquer rejeição, ao longo da totalidade do ciclo de vida do processo ou produto é a base e objetivo primordial do QbD. Para esta tarefa ser bem sucedida é necessário proceder, no caso de um novo produto, de forma racional e em sentido direto, conforme o roteiro descrito na Tabela 1. No entanto, a abordagem científica proposta para um produto novo pode ser adaptada e aplicada retrospectivamente para um produto e processo já existentes com vantagens significativas em termos de garantia da qualidade e ganho de competitividade8.
I - Especificar prévia, completa e cientificamente os atributos do produto final que definem a sua eficácia e segurança terapêuticas para o paciente, assim como a qualidade. A este perfil de especificações chama-se QTPP (Quality Target Product Profile) por se entender a qualidade no sentido usado por Juran, como o todo das especificações com impacto no perfil QSE;
II - Ter e reunir o conhecimento existente (prior-knowledge) sobre a formulação e modo de administração, assim como o processo de fabricação e todas as suas operações unitárias, variáveis de atuação disponíveis assim como especificações de qualidade a serem monitoradas em processo (IPC);
III - Avaliar as falhas de conhecimento (gaps) em termos de riscos potenciais sobre o QTPP; considerar as principais fontes de variabilidade em cada uma das etapas de fabricação e a sua consequente propagação e impacto nas propriedades do QTPP. Tentar explicar de forma científica as origens e mecanismos prováveis das fontes de variabilidade e delinear estratégias de controle ou mitigação dos riscos anteriores, considerando o ciclo de vida do processo/produto;
IV - Avaliar as falhas de conhecimento ou de informação experimental com novas experiências planilhadas previamente (DoE, design of experiments) as quais permitam estabelecer as causas entre diferentes fontes de variabilidade e o seu efeito sobre o QTPP. Utilizar ferramentas PAT de modo a extrair o máximo de informação de cada experiência realizada e delineada por DoE;
V - Construir de forma quantitativa relações entre variáveis de processo e especificações de qualidade críticas pelo seu impacto posterior sobre o QTPP, o que será feito para cada operação unitária ou globalmente para todo o processo. Definir, a partir da construção anterior, a região de condições operatórias que sistematicamente originam um produto consistente com as especificações (design-space ou o equivalente multidimensional das antigas PAR, Proven Acceptable Ranges, uma vez que em QbD são consideradas todas as variáveis com impacto sobre as especificações críticas);
VI - Propor estratégias de controle que garantam a operação nominal do processo dentro do design-space, salvaguardando incertezas e evitando operar junto a condições limite (edges of failure) – ou seja o equivalente multidimensional das antigas NOR (Nominal Operating Ranges);
VII - Estabelecer formas de verificação contínua dos pontos críticos do processo de modo a corrigir desvios ainda durante a fabricação, garantindo a qualidade do produto final não só por projeto, mas também por uma operação otimizada pelo conhecimento adicional obtido previamente na implementação da estratégia QbD (manufacturing-sciences & technologies).
Tabela 1 - Passos na definição e implementação de estratégias QbD para um produto novo
O Foco do QbD é o Produto - Em comunidades científicas mais orientadas para os aspectos de química medicinal e farmacologia, existe a percepção de que o QbD diz respeito apenas a aspectos de concepção ou projeto molecular da substância química ou bioquímica que afetam a sua eficácia e segurança terapêuticas.De fato, estes são aspectos indissociáveis do QbD, sendo chamados de QTPP – Quality Target Product Profile (Parâmetros do Perfil de Qualidade do Produto). Porém, design em QbD diz respeito também ao processo que produzirá a substância. Mesmo depois de definida uma substância (molécula) com uma base científica muito sólida em termos de QSE, existem desafios consideráveis em termos da concepção e operação do processo de produção, capazes de comprometer a consistência de qualidade exigida pelo QbD.
O Foco do PAT é o Processo - Durante a fase de produção de rotina na escala industrial, num produto desenvolvido e produzido por QbD, existe um duplo foco em tempo real sobre o processo e o produto.Uma vez que são conhecidos os pontos e as variáveis críticas do processo, o processo nesses pontos e respectivas variáveis críticas são monitoradas e feitos ajustes nos locais adequados de modo a evitar um efeito sobre os parâmetros de qualidade do produto final.É um novo paradigma de controle de qualidade (por antecipação no processo) de modo a evitar problemas irreversíveis no produto final.É muito mais do que uma nova versão do conhecido sistema Controle de Processo (IPC, In Process Control).
Excelência e o QbD - A FDA e a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) já contabilizam o recebimento de mais de 100 submissões de novas moléculas de origem química ou biológica concebidas a partir da utilização de elementos QbD. Metade das submissões em 2013 nos EUA e na União Europeia (UE) já possuía elementos QbD, como análises de risco e utilização de ferramentas PAT, sendo esta progressão exponencial nos últimos cinco anos.
A viabilidade técnica e econômica da implantação de QbD estão demonstradas9.É normal um desenvolvimento por esse método ser mais caro quando comparado a um modelo clássico.O retorno do investimento em QbD só é possível se considerado o ciclo de vida integral de um produto.Não faz sentido pensar numa implementação QbD para um produto numa empresa que produza 1~2 lotes/ano, mas existe um break-even a partir de um determinado número de lotes (dependente da estrutura de custos do processo e do preço do API em questão) em que os ganhos proporcionados pelo uso de QbD justificam largamente o tempo e investimento feitos.
A aprendizagem e a possibilidade de reutilização de elementos QbD em projetos afins justifica igualmente a opção por esse método para produtos que partilhem a mesma plataforma tecnológica, conseguindo-se, inclusive, nestes casos reduzir o tempo de desenvolvimento.Por fim, uma cultura de excelência em termos das novas disciplinas da Qualidade constitui um fator de diferenciação positiva entre empresas concorrentes e agências reguladoras.
O Panorama QbD na Língua Portuguesa - No Brasil, em 2011 e 2013 realizaram-se os 1º e 2º Cursos PAT organizados pelo Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas (Unicamp). O mesmo curso foi realizado ano passado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. O sindicato que reúne as indústrias farmacêuticas e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária promoveram workshops sobre o assunto em 2012, 2013 e 2014. Em Portugal foi criado, em 2007, um dos primeiros programas em nível mundial de formação na área de PAT/QbD: o Mestrado em Engenharia Farmacêutica, iniciativa conjunta da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e do Instituto Superior Técnico de Lisboa.Desde 2004 os grupos farmacêuticos portugueses já possuíam equipes internas com funções PAT/QbD. A Infarmed - Agência Reguladora Farmacêutica Portuguesa – vem apoiando iniciativas de divulgação do tema e, desde 2009, mantém uma equipe de seis técnico para inspecionar processos baseados em PAT e QbD. Em 2011, a Hovione – empresa portuguesa especializada na área da ciência da saúde – submeteu com sucesso uma Aprovação Prévia de Inspeção pela FDA à implementação integral de QbD para um de seus processos industriais10.Os autores deste artigo estiveram envolvidos em todos os aspectos acima referidos, em diferentes níveis e em diferentes momentos, tendo contribuído com outros para a promoção da área de Engenharia Farmacêutica no Brasil e em Portugal, onde o QbD tem já preponderância como Manufacturing-Science para o século XXI.
Conclusão e Visão do Futuro - No panorama mundial, é possível indicar que os novos produtos químicos, farmoquímicos e farmacêutico terão em seu desenvolvimento estratégias de QbD/PAT, não apenas pela agilidade e assertividade quanto pela confiança que será transmitida às agências reguladoras. Outro aspecto importante é a oportunidade de melhora e otimização de produtos e processos produtivos já estabelecidos, com foco em ganhos de qualidade, produtividade e redução de impacto ambiental e ocupacional, garantindo assim o equilíbrio entre os interesses dos fabricantes e dos consumidores.
Referências bibliográficas
1 - ICH Q11 – Development and Manufacture of Drug Substances (Chemical Entities and Biotechnological/Biological Entities), May, 2012.
2 - Juran JM, Juran on Quality By Design, Bass J Ed. 1992.
3 - Deming WE, The Essential Deming. McGraw-Hill, 2012.
4 - FDA, Pharmaceutical cGMPs for the 21st Century – A Risk-Based Approach: Final Report, Sep 2004.
5 - FDA, Guidance for Industry PAT – A Framework for Innovative Pharmaceutical Development, Manufacturing, and Quality Assurance, September 2004.
6 - ICH Q8 – Pharmaceutical Development (R2), August, 2009.
7 - FDA, Guidance for Industry – Process Validation: General Principles and Practices, January 2011.
8 - Lourenco V, Lochmann D, Reich G, Menezes JC, Herdling T, Schewitz J, A Quality by Design study applied to an industrial pharmaceutical fluid bed granulation. Eur. J. Pharm. Biopharm. 2012, 81(2), 438–447.
9 - Kourti T, Davis B, The Business Benefits of QbD. Pharm. Eng. 2012, July/August 52-62
10 - Hovione Press Release May 9th, 2011 (www.hovione.com).
Os autores são da 4Tune Engenharia Ltd., empresa portuguesa com larga experiência na implantação de QbD e que está se instalando no Brasil.
Doutor em Engenharia Química, Menezes é fundador da companhia, seu presidente e professor na Universidade de Lisboa/Portugal.
Engenheiro Químico e Mestre em Engenharia de Processos Químicos e Bioquímicos, Flôres é gerente de Desenvolvimento de Aplicações da empresa, atuando ainda como professor na Universidade
de Mogi das Cruzes/SP.
Especialista sênior da 4Tune, Francisca Gouveia é Bióloga e Mestre em Engenharia Farmacêutica.