A Química e a qualidade da cachaça
Autor(a): Felipe A. T. Serafim, Carlos A. Galinaro, Alexandre A. da Silva, Francisco W. B. Aquino e Douglas W. Franco
“A minha cachaça não tem química, é natural!”. Vai longe à época em que esta afirmação era pronunciada por produtores de aguardente. Hoje em dia eles entendem claramente que a produção de aguardente envolve uma série de processos químicos, físico-químicos e bioquímicos bastante complexos e que alguns destes ainda não se encontram muito bem esclarecidos.
A distinção entre o “rum e a cachaça produzidos respectivamente, a partir da destilação do melaço e do caldo de cana fermentado após a sua fermentação, foi obtida por meio da análise química da sua fração orgânica e inorgânica (34 analitos). Em seguida, os resultados obtidos foram analisados pelas técnicas de Análise de Componentes Principais (PCA) e Análise Hierárquica de Agrupamentos (HCA) que permitiram identificar quais os compostos mais relevantes para esta distinção (ácido protocatecuico, propanol, iso-butanol, manganês, magnésio e cobre). Desta forma foi possível determinar que o conhecimento de apenas 6 compostos seria o suficiente para a discriminação pretendida(Figura 1).
Esta distinção foi de grande valia na identificação da cachaça como produto genuinamente brasileiro no contexto internacional, pois a aguardente era considerada um tipo de rum, prejudicando sua identificação e valorização junto ao mercado internacional.
A distinção entre cachaças produzidas em coluna e em alambique seguiu a mesma trilha, ou seja, a análise química e o tratamento quimiométrico dos resultados auxiliaram na identificação dos compostos discriminados de cada tipo de destilação (benzaldeído, carbamato de etila, formaldeído, 5-hidroxi-metil-furfuraldeído, ácido acético e propionaldeído)2,3 e conseqüentemente, a elaboração de modelos para se determinar a procedência de cada destilado (Figura 2). Estas análises vieram a dar suporte técnico à discussão entre os produtores de aguardente, de coluna e de alambique. Esta discussão esta centrada nas vantagens e nas desvantagens do tipo de ambos os sistemas utilizados, principalmente com relação ao volume de destilado produzido. No mercado, ambos produtos ainda são comercializados de forma indistinta. A rotulagem relatando a procedência do produto é um dos antigos pleitos dos produtores de cachaça de alambique.
A queima da cana é um dos graves problemas ambientais e de saúde pública. Os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), produzidos durante a queima da cana-de-açúcar, são transferidos para o álcool e para a aguardente. A análise cromatográfica permite identificar e quantificar a presença destes compostos em álcool e aguardente, enquanto que o tratamento quimiométrico destes resultados possibilita distinguir o destilado produzido com cana queimada do produzido com cana não queimada (Figura 3). Este ponto é de grande interesse, pois os HPAs são formados em altas temperaturas (~700ºC) e não são destruídos durante a combustão do etanol nos motores, sendo lançados na atmosfera. Certamente o controle dos teores de HPAs em álcool combustível será exigido para exportações deste produto.4,5
Estes três itens exemplificam avanços no processo da qualificação e da tipificação do produto, agregando valor ao mesmo, e que somente foram possíveis com a participação efetiva da química. Este fato não passou despercebido dos produtores de aguardente que nestes últimos quinze anos mudaram radicalmente sua postura com relação a química, a qual agora é considerada uma aliada, tornando-se a aproximação entre os produtores e os Laboratórios de pesquisa mais objetiva.
A qualidade de um produto, certamente, não esta restrita simplesmente à sua composição química requerida para a certificação. No caso da aguardente, por exemplo, água e álcool etílico respondem por 98% de sua composição. Os demais 2% são uma mistura de compostos orgânicos e inorgânicos (íons), majoritariamente responsáveis pelas propriedades organolépticas da bebida.
De nada adianta um produto estar dentro das normas de certificação química se o mesmo não apresentar propriedades sensoriais que agradem ao consumidor. Assim, esforços estão sendo dirigidos, buscando correlacionar a composição química e as propriedades sensoriais dos produtos.6 O Concurso de Qualidade da Cachaça, iniciado em 2004, com periodicidade bianual, tem se dedicado a desenvolver esta abordagem.
Nestes concursos, as amostras já codificadas passam por um processo que envolve três etapas: a análise química, a análise sensorial e o teste afetivo (degustação). A análise química é de caráter eliminatório, precedendo a análise sensorial e o teste afetivo. A análise sensorial e o teste afetivo são efetuados por painel de degustadores treinados e pelo público em geral, respectivamente. Estes testes são conduzidos pelo professor Luigi Odello, do Centro Studi Assaggiatori, Brescia, Itália, seguindo os padrões europeus. A nota média destas três avaliações conduz à hierarquização dos produtos dos participantes, de acordo com suas qualidades químicas e sensoriais.
A última edição do concurso ocorreu em dezembro de 2010, o qual envolveu a participação de 68 amostras de aguardente de diferentes produtores, foi realizado nas dependências do Instituto de Química de São Carlos, da Universidade de São Paulo (IQSC-USP), e contou com cerca de 300 participantes. Duas foram às categorias inscritas: “Cachaças Descansadas” e “Cachaças Envelhecidas”. As primeiras dizem respeito a produtos armazenados por não mais de seis meses em recipientes de aço inox, ou tonéis de madeiras de 1000 litros ou mais; a segunda a aguardentes armazenadas em tonéis de 200 a 250 litros de madeiras tais como carvalho, umburana, bálsamo, jequitibá, por períodos de pelo menos 12 meses. A Tabela 1 apresenta as cachaças premiadas. Nota-se que a participação não esta de forma alguma, restrita ao Estado de São Paulo.
Tabela 1. Premiação do 4º Concurso da Cachaça realizado durante o VIII Brazilian Meeting on Chemistry of Food and Beverages na cidade São Carlos, SP (2010).
Envelhecidas
Premiação
Estado
Porto Morretes
Ouro
Paraná
Mazzaropi
Prata
São Paulo
Tapinuã dos Reis
Prata
Rio de Janeiro
Campanari
Prata
São Paulo
Porto Morretes
Bronze
Paraná
Barril 12
Bronze
Goiás
Engenho da Vertente
Bronze
São Paulo
Aroma do Caraça
Bronze
Minas Gerais
Rio do Engenho
Bronze
Bahia
Descansadas
Premiação
Estado
Jacuhy
Ouro
Minas Gerais
Embaúba
Prata
Minas Gerais
Campanari
Prata
São Paulo
Monte Alvão
Prata
Minas Gerais
Beppe
Bronze
Minas Gerais
Estilo Mineiro
Bronze
Minas Gerais
Reserva do Capitão
Bronze
São Paulo
Mato Dentro
Bronze
São Paulo
Jacuba
Bronze
São Paulo
O estudo da correlação entre as propriedades sensoriais e a composição química da aguardente, não necessariamente óbvia, é tema que está em desenvolvimento. Muito trabalho em química ainda é necessário neste fértil campo de investigação.
Referencias Bibliográficas
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GALINARO, C. A.; CARDOSO, D. R.; FRANCO, D. W. Profiles of polycyclic aromatic hydrocarbons in Brazilian sugar cane spirits: discrimination between cachaças produced from non-burned and burned sugar cane crops. Journal of Agriculture and Food Chemistry, v. 55, p. 3141-3147, 2007.
ODELLO, L.; BRACESCHI, G. P.; SEIXAS, F. R. F.; DA SILVA, A. A.; GALINARO, C. A.; FRANCO, D. W. Avaliação Sensorial de Cachaça. Química Nova, v. 32, p. 1839-1844, 2009.
Douglas W. Franco é professor titular do IQ-USP/S. Carlos.
Alexandre A. Silva, Carlos A. Galinaro e Felipe A. T. Serafim são seus alunos de doutorado.