Denunciado ao Ministério Público, “Químico autodidata” é multado pelo Plenário
Vários oportunistas se aproveitaram da pandemia de Covid-19 para tentar se autopromover ou faturar burlando as normas de segurança de produção de álcool gel e atropelando a legislação que estabelece que apenas empresas autorizadas e com profissionais habilitados podem atuar na fabricação desse importante insumo de combate ao novo coronavírus.
Entre os casos ocorridos na jurisdição do CRQ-IV (SP), o de maior repercussão foi o que teve como protagonista Jorge Gustavo Afecto, que no LinkdIn dizia ter graduação em Gestão Empresarial. Em um vídeo veiculado em fevereiro, que viralizou nas redes sociais e foi até usado como alerta de fake news no site do Ministério da Saúde (foto), ele se declarou um “químico auditada” desde 1995. Alegando vasta experiência na área – pois teria trabalhado e sido dono de várias indústrias químicas –, propagou a falsa informação de que o álcool gel não possuía propriedades antissépticas, devendo por isso ser substituído pelo vinagre como agente de desinfecção contra o novo coronavírus. “O álcool gel e nada é a mesma coisa. Pelo contrário, ele é até mais perigoso que você não passar nada. O álcool não mata nada, ele não desinfeta nada; ele apenas esteriliza”, afirmava ele em certo trecho do vídeo.
Tão logo tomou conhecimento do caso, o CRQ-IV fez pesquisas nas redes sociais, na Junta Comercial e descobriu o endereço de residência de Afecto. No início de março, um agente fiscal foi destacado para fazer uma diligência até o local e conseguiu encontrá-lo. Na entrevista, Afecto confirmou ser o autor do vídeo e que, apesar de não ter nenhuma formação em Química, explicou ter baseado sua afirmação sobre a suposta ineficácia do álcool gel na experiência que adquiriu como comprador de insumos químicos e vendedor de produtos de higiene e limpeza.
Durante a conversa com o fiscal do Conselho, Afecto disse ter se arrependido da publicação do vídeo em razão da repercussão negativa que gerou, mas manteve a afirmação de que o vinagre seria melhor bactericida (sic) do que o álcool gel 70%, pois este último teria ação eficaz apenas no curto prazo e que, ainda segundo suas palavras, os agentes espessantes usados na formulação do produto poderiam ser focos de proliferação de microrganismos.
Diante da gravidade de suas afirmações – que contrariaram orientações dos órgãos sanitários e da saúde das esferas Federal, estaduais, municipais e da Organização Munidial da Saúde (OMS), colocando em risco a saúde da população –, o CRQ-IV tomou duas providências: abriu um processo administrativo por exercício ilegal da profissão e apresentou uma notícia-crime contra Afecto na Procuradoria Geral de Justiça – Ministério Público Estadual (MPSP).
Intimado a prestar esclarecimentos sobre o exercício ilegal da profissão de químico, Afecto não apresentou defesa. Por conta disso, foi declarado revel e, na sessão realizada ontem (15/12), o Plenário do Conselho lhe aplicou uma multa no valor de R$ 2.500,00.
A denúncia feita ao MPSP também prosperou. Segundo comunicado enviado no final de novembro pela 3ª Promotoria de Justiça Criminal, a representação oferecida pelo CRQ-IV foi encaminhada ao 15º Distrito Policial para investigação e posterior instauração de inquérito. Não havia novas informações sobre o andamento do processo até o fechamento desta reportagem.
Outros casos – Também estão em andamento no Conselho 19 casos envolvendo a fabricação irregular de álcool gel. Destes, sete se referem a produtos fabricados fora das especificações técnicas, onze envolvem empresas que não tinham autorização da Vigilância Sanitária para atuar nessa área e um analisa a ação de um Engenheiro Químico que utilizava sua página no Facebook para “ensinar” o público leigo a produzir seu próprio álcool gel.
Os Responsáveis Técnicos foram convocados para prestar esclarecimentos. Em cinco casos, já se decidiu pela abertura de processos éticos, que podem resultar desde a sua não responsabilização até a aplicação da pena máxima de suspensão do direito de exercer a profissão. Os responsáveis legais pelas empresas que não tinham registro no CRQ-IV estão sendo intimidados a regularizar a situação e a indicarem profissionais da Química para a função de Responsáveis Técnicos. Caberá a estes profissionais tomarem as providências necessárias para obter as autorizações para fabricação de álcool gel junto à Vigilância Sanitária.
O Conselho trabalhou ainda com um segundo bloco envolvendo 18 processos. Foram casos veiculados principalmente pela imprensa, mas cujas apurações não puderam ser levadas adiante por diferentes razões, como a empresa denunciada estar fora da jurisdição do Conselho, estar registrada em outro conselho profissional ou o endereço da denunciada não ter sido localizado.
Ética – Os processos abertos pela Gerência de Fiscalização do CRQ-IV serão julgados pela Câmara de Ética da entidade a partir de janeiro do ano que vem. Além dos casos envolvendo a produção de álcool gel, também serão analisadas aproximadamente 20 ocorrências de empresas e profissionais que se evolveram na montagem e disponibilização das chamadas “cabines de desinfecção de pessoas”. Instalados em locais de grande circulação de algumas cidades paulistas e de outros estados, esses dispositivos aspergiam produtos químicos variados em quem estivesse em seu interior. O objetivo seria eliminar a carga viral presente nas vestes e corpo.
Contudo, estudos elaborados pelas Comissões Técnicas do CRQ-IV em conjunto com a Associação Brasileira das Indústrias de Produtos de Higiene, Limpeza e Saneantes de Uso Doméstico e de Uso Profissional (Abipla) e posteriormente corroborados por Notas Técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) demonstraram que o uso de tais cabines não só é inócuo como forma de combate ao novo coronavírus, como também tem potencial para causar graves danos à saúde das pessoas.
Em uma ação recente, as duas entidades, apoiadas pelo Conselho Federal de Química e pela Associação Comercial de São Paulo, conseguiram convencer o prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), a vetar um Projeto de Lei, aprovado pela Câmara de Vereadores, que obrigava a instalação dessas cabines em locais de grande aglomeração de pessoas, como parques, terminais de ônibus, shoppings etc. (Clique aqui para mais informações sobre este assunto).
Para o Engenheiro Químico Wagner Contrera Lopes, que assumiu recentemente a Superintendência do CRQ-IV, “o sucesso do trabalho relacionado à pandemia de Covid-19 foi possível graças à colaboração da entidade com os órgãos de Vigilância Sanitária, autoridades policiais, políticos e representantes de associações empresariais, que se esforçaram para coibir abusos e evitar a adoção pelo próprio poder público de medidas sem eficácia comprovada no combate ao novo coronavírus”.
Publicado em 16/12/2020
Voltar para a relação de matérias