Agentes para desintoxicação
As propriedades tóxicas do chumbo e de seus compostos, apesar de conhecidas há muito tempo, continuam causando problemas para a saúde das pessoas e danos ao meio ambiente. Hoje não são mais utilizados encanamentos de chumbo e taças ou garrafas de bebidas fabricadas com este metal, como foi na Roma antiga. Tampouco são usadas tintas à base de óxido de chumbo, PbO, que podem intoxicar as pessoas e os animais.
A diminuição do uso de gasolina contendo chumbo, implementada há mais de duas décadas, reduziu significativamente a concentração deste metal no meio ambiente. Particularmente no Brasil, o chumbo adicionado à gasolina como agente antidetonante foi totalmente substituído pelo etanol, que também atua como antidetonante, impedindo ou retardando a detonação nos motores à explosão. Apesar de todos os cuidados, ainda são observados casos de intoxicações agudas e crônicas por chumbo, cada vez mais difíceis de serem diagnosticadas. No Brasil, este tipo de intoxicação não tem uma classificação adequada quanto à sua ocorrência, principalmente pela falta de um número maior de registros estatísticos sobre o assunto.
O objetivo deste artigo é o de chamar a atenção às possíveis fontes de intoxicação ainda existentes, aos mecanismos de ação tóxica do chumbo e, principalmente, aos agentes utilizados para tratar as intoxicações que ele causa. Esses agentes são moléculas ou ânions especiais chamados de quelantes e atuam como antagonistas no sentido de reduzir os efeitos danosos da intoxicação. Os antagonistas formam ligações químicas fortes e estáveis com o chumbo acumulado no organismo eliminando-o através da urina.
Atualmente, o chumbo ainda é um poluente presente nas nuvens de poeira que se formam nas demolições de prédios e residências pintados há muitos anos. As paredes de casas antigas contêm elevada quantidade de chumbo, uma vez que um dos pigmentos utilizados nas tintas era o óxido de chumbo, PbO. Quando as casas antigas são demolidas, este óxido de chumbo pode ser inalado pelos trabalhadores em elevada quantidade, causando distúrbios respiratórios. A exposição prolongada pode acarretar problemas mais sérios aos trabalhadores, com destaque àqueles de origem neurológica. Atualmente, o óxido de chumbo não é mais utilizado na fabricação de tintas de parede como ocorreu no passado.
Embora em menor escala, é importante destacar também a possibilidade de contato com o metal pela reutilização indevida das caixas de baterias para estoque de água ou na fabricação clandestina de destilados alcóolicos pela utilização de serpentinas soldadas com chumbo. Além do chumbo, outros metais pesados como o mercúrio e o cádmio são altamente nocivos ao organismo humano.
Intoxicações agudas e crônicas
A absorção de chumbo, de um modo geral, ocorre através do estômago, do intestino e do sistema respiratório. Na hipótese de se ingerir acidentalmente íons de chumbo, por exemplo, em águas contaminadas, este pode ser absorvido pelo sistema gastrointestinal. A absorção gastrointestinal varia também com a idade. Em casos graves, os adultos absorvem aproximadamente 1/4 do chumbo ingerido em relação às crianças.
As diferentes formas de absorção do chumbo estão intimamente relacionadas com o tipo de órgão ou tecido aos quais ele pode se ligar no corpo humano. O chumbo atinge inicialmente os tecidos dos rins e do fígado através do sangue. Posteriormente, ao ser em parte expelido pela urina, o metal é redistribuído no organismo, fixando-se nos ossos e nos dentes na forma de fosfato de chumbo. Nos cabelos, o chumbo está ligado aos aminoácidos, principalmente os aminoácidos sulfurados presentes nos fios. Os aminoácidos são as moléculas orgânicas que formam todas as proteínas do nosso corpo. Mais de 90% do chumbo absorvido pelo corpo ficam depositados. Os compostos orgânicos contendo chumbo são lipossolúveis (solúveis em gorduras), sendo que uma pequena quantidade do metal pode se acumular no cérebro. Se o doente intoxicado sobreviver à fase aguda do envenenamento por chumbo, a cura e a recuperação podem ser totais.
Os problemas neurológicos são mais comuns em crianças, e os problemas gastrointestinais ocorrem com maior frequência em adultos. A encefalopatia, doença neurológica decorrente do acúmulo de chumbo no cérebro, é a mais séria das enfermidades causadas por este metal. Alguns de seus sintomas iniciais, como vertigens, dores de cabeça, insônia e irritabilidade, dificultam o diagnóstico. Na medida em que a exposição persiste, o paciente apresenta sintomas semelhantes aos de tumores cerebrais, o que também dificulta o diagnóstico. Convulsões e delírios são os sintomas subsequentes e a pessoa pode atingir o estado de coma. Distúrbios visuais também são observados.
Tratamento de intoxicações: a quelação
A finalidade de qualquer tratamento de intoxicação por chumbo é a retirada de circulação do metal utilizando-se agentes quelantes. Este processo é conhecido como quelação. Os agentes quelantes (do grego chele = garra) são moléculas ou ânions que se ligam ao metal por pelo menos dois átomos distintos, como se fossem capazes de “aprisionar” o metal. Desta forma, o metal “aprisionado” fica desativado e, portanto, inativo. Na figura 1 está representado um metal M "aprisionado" pelo agente quelante EDTA.
Complexo do agente quelante
EDTA com o metal M
A eficiência de um agente quelante no tratamento da intoxicação por chumbo está intimamente relacionada com sua capacidade de chegar aos locais de armazenamento deste metal no corpo humano e de formar compostos não tóxicos com o chumbo. É importante observar também que o complexo formado entre o quelante e o chumbo deve ser rapidamente excretado do organismo, sendo, portanto, desejável que o complexo tenha alta solubilidade em água. A baixa afinidade destes agentes quelantes pelos metais essenciais ao organismo como Fe²+ e Ca²+ é, sem dúvida, desejável, uma vez que caso ocorra ligação do quelante com estes metais essenciais, outros distúrbios como hipocalcemia (perda de cálcio) ou anemia podem surgir.
As medidas iniciais em casos de intoxicações agudas recomendam a prevenção imediata a novas exposições. A concentração inicial de chumbo no sangue deve ser determinada para se avaliar quantitativamente os resultados de qualquer tipo de terapia.
A terapia medicamentosa é aplicada em pacientes com uma concentração inicial de chumbo superior a 50 microgramas por decilitro de sangue. Quatro compostos são utilizados com mais frequência: EDTA na forma de sal de sódio e cálcio (CaNa2EDTA), dimercaprol (BAL-British anti-Lewisite), D-penicilamina e ácido 2,3-dimercaptosuccínico (DMSA-Chemet). O EDTA e o dimercaprol são frequentemente utilizados na forma combinada no tratamento da encefalopatia. As estruturas destes agentes complexantes são mostradas na tabela abaixo.
Fórmulas dos agentes utilizados no tratamento da intoxicação por chumbo
Composto |
Fórmula estrutural |
CaNa2EDTA |
|
Dimercaprol (BAL) |
|
Ácido 2,3-dimercaptosuccinico (DMSA) |
|
D-penicilamina |
|
O agente quelante CaNa2EDTA é aplicado por injeção intramuscular ou por lenta infusão intravenosa. O tratamento com EDTA pode aliviar os sintomas rapidamente. A eliminação do chumbo ocorre em decorrência da formação de um complexo solúvel e estável com o EDTA, que é eliminado na urina em elevadas concentrações durante as infusões iniciais. O dimercaprol é utilizado via intramuscular. Os íons Pb²+ possuem uma alta afinidade pelos grupos sulfidrílicos (S-H) presentes neste agente quelante, o que permite retirar o chumbo facilmente.
O quelante ácido 2,3-dimercaptosuccinico (DMSA) foi o primeiro a apresentar atividade quando ministrado na forma oral no tratamento de crianças com elevadas eficácia e segurança. A ação quelante desta substância ocorre simultaneamente pelos grupos carboxílicos (COOH) e sulfidrílicos (S-H).
Diferentemente do EDTA e do dimercaprol, a D-penicilamina é efetiva via oral e pode ser incluída na dieta alimentar. Na fórmula estrutural da D-penicilamina estão presentes os grupos amino (NH2), carboxílico (COOH) e sulfidrílicos, que fazem desta substância um medicamento mais eficaz, porque aumentam seu poder de aprisionar o metal.
O período máximo para se reavaliar a concentração de chumbo no sangue do paciente, após o tratamento da intoxicação pelo agente quelante é de duas semanas. Uma nova terapia pode ser indicada, se a concentração de chumbo detectada no sangue ainda estiver elevada. Os efeitos colaterais dos agentes quelantes utilizados no tratamento da intoxicação por chumbo estão relacionados basicamente à ocorrência de anemia, pela retirada de elementos essenciais ao organismo, como o ferro, e à descalcificação pela perda de cálcio.
Os desafios para os químicos que atuam nesta área consistem em descobrir novas substâncias que possam ser utilizadas isoladamente ou em conjunto com estas já conhecidas, melhorando a eficiência do tratamento da intoxicação por chumbo e por outros metais pesados, com redução de efeitos colaterais e melhora da qualidade de vida das pessoas.
Antonio Carlos Massabni, Pedro Paulo Corbi, Maurício Cavicchioli
Publicado em março de 2011