Da morte das estrelas à vida como a conhecemos
Breno Pannia Espósito*
O espaço é sideral porque as estrelas são como fagulhas em brasa de ferro (que, em grego, chama-se σιδήρου, sidírou). E é nestas descomunais fornalhas que todos os elementos químicos mais pesados que o hélio são forjados, por reações de fusão nuclear. Essas reações são extremamente exotérmicas, liberando uma quantidade de calor tão grande que só não causam a explosão das estrelas porque elas são muito massivas, e a gravidade as mantém de alguma forma coesas. Então, do hidrogênio ao hélio, ao carbono, ao oxigênio, ao silício... a síntese dos elementos vai gerando calor para manter a estrela nos céus.
Mas só até chegar ao ferro. O ferro é o último elemento químico que pode ser gerado através dessas reações de fusão nuclear “clássicas”. Quando ele é formado, não há mais energia suficiente para a formação de núcleos maiores. Se a estrela for grande, à medida em que mais ferro se acumula no seu interior, a expansão provocada pelo calor vai perdendo terreno para a atração gravitacional, que em determinado momento é tão grande que implode a estrela, forçando núcleos atômicos a uma aproximação insustentável, o que causa um efeito rebote de formidável explosão que nos é conhecido como supernova. Excesso de ferro é um sinal do fim iminente da estrela que ficou sem combustível.
Fragmentos de ferro são encontrados pelo Universo, como asteroides e poeira interestelar, e esse metal é o principal componente do núcleo da Terra (possivelmente, de outros planetas rochosos também). Lá no núcleo, o ferro metálico, fundido, gira devido a correntes de convecção, produzindo um campo magnético que é crucial para manter a vida na superfície ao funcionar como uma espécie de escudo contra boa parte das partículas ionizadas que vêm do Sol. O ferro sustenta um guarda-chuva magnético que nos protege do vento solar.
O ferro é o quarto elemento mais abundante na crosta terrestre (5% de abundância, ficando atrás do oxigênio, silício e alumínio), e é o mais abundante metal de transição. Ele é conhecido desde a Antiguidade, mas apenas muito raramente é encontrado na forma metálica na natureza, pois rapidamente se oxida em contato com o ar, formando óxidos muito estáveis e pouco solúveis como a hematita (Fe2O3) e a magnetita (Fe3O4), os seus principais minérios.
O Brasil ocupa a invejável terceira posição mundial na produção de ferro (13% do total mundial), embora apenas a oitava posição (2%) na produção do aço, uma das ligas mais importantes do mundo moderno.
De fato, é difícil superestimar a importância econômica e social do ferro e dos seus compostos para nós, hoje. Sem eles, não teríamos veículos ou edificações. Cidades inteiras se mantêm graças à geração de riquezas das siderúrgicas, as principais indústrias transformadoras de ferro. Foi uma siderúrgica, a CSN, um dos marcos da industrialização do Brasil, e que reverteu a sorte da cidade de Volta Redonda, no Rio de Janeiro.
Também é difícil exagerar a importância biológica do ferro. Várias enzimas dependem de ferro para o seu funcionamento correto, e é central o papel desse metal para a nossa respiração. Moléculas contendo ferro são responsáveis pelo transporte e armazenamento do oxigênio que respiramos. E também permitem uma boa parte do tráfego de elétrons durante a respiração celular, processo no qual esse oxigênio é convertido em água e elétrons são adicionados ou removidos de biomoléculas, nas chamadas reações de óxido-redução, produzindo compostos que nos são úteis e gerando energia.
Não é surpreendente, portanto, que desbalanços nos níveis de ferro sejam deletérios para a saúde humana. A anemia ferropriva (ou seja, a anemia causada pela deficiência de ferro na dieta) é um dos problemas de saúde pública mais graves do planeta, hoje, pois afeta cerca de 1,5 bilhão de pessoas, tipicamente mulheres e crianças de países pobres com pouco acesso à alimentação de qualidade.
Por outro lado, o excesso de ferro também pode ser deletério. Não são tão comuns quanto a anemia ferropriva, mas condições como a talassemia e a hemocromatose podem levar a uma sobrecarga de ferro que o organismo não consegue administrar. Excesso de ferro é tóxico exatamente por aquela capacidade de realizar reações de óxido-redução: estando fora de compartimentos bioquímicos corretos, o ferro “livre” causa estresse oxidativo, atacando tecidos saudáveis. O tratamento é importante e relativamente simples, feito à base de quelantes (moléculas especialmente hábeis na ligação a íons metálicos). Mas tem que ser feito, pois, afinal, se o ferro em excesso sinaliza o fim da vida das estrelas, o que não fará conosco, feitos de sua poeira?
*Professor associado do Instituto de Química da USP.
Leia mais:
- Tabela Periódica.org
www.tabelaperiodica.org/ferro/
- Sumário Mineral Brasileiro
www.anm.gov.br/dnpm/publicacoes/serie-estatisticas-e-economia-mineral/sumario-mineral
- Anemia (Ministério da Saúde)
bvsms.saude.gov.br/bvs/dicas/69anemia.html
- Associação Brasileira de Talassemia
abrasta.org.br/
- Atuação metabólica do ferro
www.infoescola.com/bioquimica/atuacao-metabolica-do-ferro/